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Marcos Resende Coisas

Marcos Resende Coisas

Coisas de Patativa do Assaré

Patativa do Assaré.jpg

 

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ARTE MATUTA

Eu nasci ouvindo os cantos
das aves de minha serra
e vendo os belos encantos
que a mata bonita encerra
foi ali que eu fui crescendo
fui vendo e fui aprendendo
no livro da natureza
onde Deus é mais visível
o coração mais sensível
e a vida tem mais pureza.

Sem poder fazer escolhas
de livro artificial
estudei nas lindas folhas
do meu livro natural
e, assim, longe da cidade
lendo nessa faculdade
que tem todos os sinais
com esses estudos meus
aprendi amar a Deus
na vida dos animais.

Quando canta o sabiá
Sem nunca ter tido estudo
eu vejo que Deus está
por dentro daquilo tudo
aquele pássaro amado
no seu gorgeio sagrado
nunca uma nota falhou
na sua canção amena
só canta o que Deus ordena
só diz o que Deus mandou.

O QUE MAIS DOI

O que mais dói não é sofrer saudade
Do amor querido que se encontra ausente
Nem a lembrança que o coração sente
Dos belos sonhos da primeira idade.
Não é também a dura crueldade
Do falso amigo, quando engana a gente,
Nem os martírios de uma dor latente,
Quando a moléstia o nosso corpo invade.
O que mais doi e o peito nos oprime,
E nos revolta mais que o próprio crime,
Não é perder da posição um grau.
É ver os votos de um país inteiro,
Desde o praciano ao camponês roceiro,
Pra eleger um presidente mau.

MINHA SERRA

Quando o sol nascente se levanta
Espalhando os seus raios sobre a terra,
Entre a mata gentil da minha serra
Em cada galho um passarinho canta.

Que bela festa! Que alegria tanta!
E que poesia o verde campo encerra!
O novilho gaiteia a cabra berra
Tudo saudando a natureza santa.

Ante o concerto desta orquestra infinda

Que o Deus dos pobres ao serrano brinda,
Acompanhada da suave aragem.

Beijando a choça do feliz caipira,

Sinto brotar da minha rude lira
O tosco verso do cantor selvagem.

APOSENTADORIA DE MANÉ DO RIACHÃO

Seu moço, fique ciente
De tudo que eu vou contar,
Sou um pobre penitente
Nasci no dia do azá,
Por capricho eu vim ao mundo
Perto de um riacho fundo
No mais feio grutião
E como ali fui nascido,
Fiquei sendo conhecido
Por Mané do Riachão.

Passei a vida penando

No mais crué padicê,
Como tratô trabaiando
Pro filizardo comê,
A minha sorte é trucida,
Pra miorá minha vida
Já rezei e fiz promessa,
Mas isto tudo é tolice,
Uma cigana me disse
Que eu nascí foi de trevessa.

Sofrendo grande cancêra

Virei bola de biá
Trabaiando na carrêra
Daqui, pra ali e pra aculá,
Fui um eterno criado
Sempre fazendo mandado
Ajudando aos home rico,
Eu andei de grau em grau
Taliquá o picapau
Caçando broca em angico.

Sempre entrando pelo cano

E sem podê trabaiá,
Com secenta e sete ano
Percurei me apusentá,
Fui batê lá no iscritoro
Depois eu fui no cartoro,
Porém de nada valeu,
Veja o que foi, cidadão,
Que aquele tabelião
Achou de falá pra eu.

Me disse aquele iscrivão

Frangindo o côro da testa:
— seu Mané do Riachão,
Este seus papé não presta,
Isto aqui não vale nada,
Quem fez esta papelada
Era um cara vagabundo,
Pra fazê seu apusento
Tem que trazê documento
Lá do começo do mundo.

E me disse que só dava

Pra fazê meu apusento
Com coisa que eu só achava
No Antigo Testamento,
Eu que tava prazentêro
Mode recebê dinhêro,
Me disse aquele iscrivão
Que precizava dos nome
E também dos subrinome
De Eva e seu marido Adão.

E além da identidade

De Eva e seu marido Adão
Nome de niversidade
Onde estudou Salomão
Com outras coisas custoza,
Bem custoza e cabuloza,
Que neste mundo revela
A Escritura Sagrada,
Quatro dente da quêxada
Que Sansão brigou com ela.

Com manobra e mais manobra

Pra puder me aposentá,
Levá o nome da cobra
Que mandou Eva pecá
E além de tanto fuxico,
O registro e o currico
De Nabuco Donozô,
Dizê onde ele morreu,
Onde foi que ele nasceu
E aonde se batizô.

Veja moço, que novela,

Veja que grande caipora
E a pió de todas ela
O sinhô vai vê agora,
Para que me apusentasse,
Disse que também levasse
Terra de cada cratéra
Dos vulcão dos istrangêro
E o nome do vaquêro
Que amansô a Besta Fera.

Iscutei achando ruim,

Com paciênça fraca
E ele oiando pra mim
Com os óio de jararaca
Disse: a coisa aqui é braba
Precisa que você saba
Que eu aqui sou o iscrivão,
Ou estas coisa apresenta,
Ou você não se apusenta,
Seu Mané do Riachão.

Veja moço, o grande horrô

Sei que vou morrê dipressa,
Bem que a cigana falou
Que eu nasci foi de trevessa,
Cheio de necessidade
Vou vivê da caridade,
Uma ismola cidadão!
Lhe peço no Santo nome,
Não dêxe morrê de fome
O Mané do Riachão. 

 

 

 

  

 

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O cearense Antônio Gonçalves da Silva, a Patativa do Assaré (Assaré, 05.03.1909 — Assaré, 08.07.2002 aos 93 anos), foi poeta popular, compositor, cantor e repentista. Uma das principais figuras da música nordestina do século XX.
De família pobre que vivia da agricultura, cedo ficou cego do olho direito. Com a morte do pai, aos 8 anos de idade, passou a ajudar a família no cultivo da terra. Aos 12, frequentava a escola local, em que se alfabetizou em poucos meses. Poeta repentista desde muito cedo apresentava-se em festas e ocasiões importantes. Aos 20 anos já havia conquistado fama nas redondezas e a alcunha de Patativa de Assaré, comparando a qualidade de sua poesia  à beleza do canto da Patativa.