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Marcos Resende Coisas

Marcos Resende Coisas

Coisas de Fernando Sabino

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Índice Coisas ● Índice Geral

01.
O homem pode muito bem estar jantando na casa de Greta Garbo e se interessar mais pela empregada dela. Por que este homem teria de ser considerado um tarado?

02.
No fim tudo dá certo, e se não deu certo é porque ainda não chegou ao fim.

03.
Liberdade é o espaço que a felicidade precisa.

04.
De tudo, ficaram três coisas: a certeza de que ele estava sempre começando, a certeza de que era preciso continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo de dança, do medo uma escada, do sono uma ponte, da procura um encontro.

05.
Quando eu era menino, os mais velhos perguntavam: o que você quer ser quando crescer? Hoje não perguntam mais. Se perguntassem, eu diria que quero ser menino.

06.
Para os pobres, é dura lex, sed lex. A lei é dura, mas é a lei. Para os ricos, é dura lex, sed latex. A lei é dura, mas estica.

07.
Matar não é tão grave como impedir que alguém nasça, tirar a sua única oportunidade de ser. O aborto é o mais horrendo e abjeto dos crimes. Nada mais terrível do que não ter nascido!

08.
O importante não é dizer, é saber. Certas coisas não se dizem, porque dizendo, deixam de ser ditas pelo não-dizer, que diz muito mais.

09.
O valor das coisas não está no tempo que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesquecíveis, coisas inexplicáveis e pessoas incomparáveis.

10.
Democracia é oportunizar a todos o mesmo ponto de partida. Quanto ao ponto de chegada, depende de cada um.

11.
Infidelidade é como apanhar o seu sócio roubando dinheiro do caixa.

12.
Não confio em produto local. Sempre que viajo levo meu uísque e minha mulher.

13.
No dia em que a mulher descobre que o homem, pelo simples fato de ser seu marido, é também seu cônjuge, coitado dele.

14.
Os homens se dividem em duas espécies: os que têm medo de viajar de avião e os que fingem que não tem.

15.
ÚLTIMA CRÔNICA
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.

Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de espelhos. À compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.

Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa, como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do freguês. 


O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho — um bolo simples, amarelo-escuro, apenas uma pequena fatia triangular. A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim. 

São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca-Cola, o pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força, apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam, discretos: "Parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura — ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido — vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.

16.
Não posso responsabilizar ninguém pelo destino que me dei. Como único responsável, só eu posso modifica-lo. E vou modificar.

17.
Só é verdadeiro aquilo que não se diz... Só o silêncio é verdadeiro... É preciso ouvir o silêncio não como surdo, mas com um cego.

18.
Você acredita em Deus? Não sabia por que, sentia que deveria decidir-se, era uma pergunta que ficara sem resposta, queria sempre poder responder a tudo, estar pronto a ser interrogado, fugir às respostas dúbias, hesitantes, que nada diziam. Olhou pela janela o céu estrelado, a imensidão infinita do céu... Não foi preciso muito para concluir que, sem Deus, jamais chegaria a entender onde o universo começava e onde acabava, de onde vinha ele, para onde iria. Concentrou-se, respirou fundo, e declarou com firmeza: — Acredito.

19.
Tem gente que é só passar pela gente
que a gente fica contente…
Tem gente que sente o que a gente sente
e passa isto docemente…
Tem gente que vive como a gente vive.
Tem gente que fala e nos olha na face.
Tem gente que cala e nos faz olhar…
Toda essa gente que convive com a gente,
leva da gente o que a gente tem
e passa a ser gente dentro da gente.
Um pedaço da gente em outro alguém.

20.
— E posso saber que proveito você tira, arriscando assim a vida?
— Posso saber que proveito vocês tiram, não arriscando a sua?

 

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