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Marcos Resende Coisas

Marcos Resende Coisas

Coisas de Cecília Meirelles

Cecília Meireles 10.jpg

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01.
Eu canto porque o instante existe
Não sou alegre, nem sou triste:
sou poeta.

02.
E a memória de tudo desmanchar suas dunas desertas,
e em navios novos homens eternos navegarão.

03.
Pus o meu sonho num navio
e o navio em cima do mar;
— depois, abri o mar com as mãos,
para o meu sonho naufragar.

04.
Desenrolei de dentro do tempo a minha canção:
não tenho inveja das cigarras; também vou morrer de cantar. 

05.
A maior pena que eu tenho,
punhal de prata,
não é de me ver morrendo,
mas de saber quem me mata.

06.
Atrás de portas fechadas,
à luz de velas acesas,
entre sigilo e espionagem
acontece a Inconfidência.
Liberdade, ainda que tarde,
ouve-se em redor da mesa.
E a bandeira já está viva,
e sobe, na noite imensa.
E os seus tristes inventores
já são réus — pois se atreveram
a falar em Liberdade
(que ninguém sabe o que seja).

07
Liberdade, esta palavra,
que o sonho humano alimenta,
que não há  ninguém que explique
e ninguém que não entenda.

08.
Ai, palavras, ai, palavras,
que estranha potência, a vossa!
Todo o sentido da vida
principia à vossa porta.

09.
Tanto que fazer!
Livros que não se lêem, cartas que não se escrevem,
línguas que não se aprendem
amor que não se dá,
tudo quanto se esquece.

Amigos entre adeuses,
crianças chorando na tempestade,
cidadãos assinando papéis, papéis, papéis...
até o fim do mundo assinando papéis.
E os pássaros detrás de grades de chuva,
e os mortos em redoma de cânfora.
(E uma canção tão bela!)

Tanto que fazer!
E fizemos apenas isto.
E nunca soubemos quem  éramos
nem para quê. 

10.
Alta noite, lua quieta,
muros frios, praia rasa.
Andar, andar, que um poeta
não necessita de casa.

Acaba-se a última porta.
O resto é o chão do abandono.
Um poeta, na noite morta,
não necessita de sono.

Andar... — enquanto consente
Deus que seja a noite andada.
Porque o poeta, indiferente,
anda por andar — somente.
Não necessita de nada.

11.
Minha avó cantava e cosia.
Cantava canções de mar e de arvoredo, em língua antiga.
Eu sempre acreditei que havia música em seus dedos
e palavras de amor em minha roupa escritas.

12.
Contemplai, branquinhas,
na sua varanda,
a Chica da Silva,
a Chica-que-manda!

Cara cor da noite,
olhos cor de estrela.
Vem gente de longe
para conhecê-la.

(Por baixo da cabeleira,
tinha a cabeça rapada
e até dizem que era feia.)
Escravas, mordomos,
seguem como um rio,
a dona do dono
do Serro do Frio.

(Doze negras em redor
— como as horas, nos relógios.
Ela, no meio, era o sol!)

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